Até meu sono chegar
Até o meu sono chegar, eu recebo muitas visitas. A primeira delas é a do meu Eu-Neurótico, que já vem todo pilhadão. O meu Eu-Neurótico é um eu chato pra cacete. Ele tem um monte de características que eu realmente odeio nas pessoas:
1. Ele é histérico
2. Se faz de vítima
3. Gosta de se torturar relembrando mágoas de 1000 anos atrás
4. Ensaia discursos vingativos para o caso de reencontrar aqueles que o magoaram
O meu Eu-Neurótico tem memória de elefante para guardar coisas que não servem para nada e vive traçando paralelos entre as chatices atuais e as chatices do passado. Com isso, acredita que desenvolverá fórmulas geniais, capazes de impedir a repetição de qualquer erro já cometido. Sua meta é se transformar num ser infalível, inabalável e com uma resposta sempre pronta para toda e qualquer situação. Ao pensar isso, até estufa o peito, de tanto orgulho de sua maturidade.
E é nesse clima otimista e confiante que o Eu-Delirante vem me dar boa noite, expulsando, na maior simpatia, o eu anterior. Esse, parece que tomou LSD de tão animado com a vida, e acha que a Sorte Grande o está procurando desesperadamente, porque se apaixonou por ele. O Eu-Delirante viaja no maior barato, tem sonhos megalomaníacos e nunca acredita que algo jamais será impossível.
1. Para ele as coisas só podem ser “sensacionais”, “incríveis”, ou “extraordinárias”.
2. As paixões, “arrebatadoras”.
3. Os encontros? Não, nada de jantares românticos comportados. Ele sonha com um encontro apaixonado e kármico, num show da sua banda preferida, que acontecerá ao pôr do sol, numa praia paradisíaca, com tochas acesas e perfume no ar. Neste mesmo evento, por coincidência, ele também conhecerá alguém que oferecerá uma incrível oportunidade profissional, que depois, é claro, o fará ficar milionário, famoso e dar muitas entrevistas.
4. Ele é uma excelente companhia para ouvir músicas antes de dormir.
Depois de um tempo, o Eu-Delirante questiona tudo e entende que a realidade não funciona bem assim, como se o seu “barato” estivesse passando.... E quando esse sentimento colorido-psicodélico vai desbotando para um preto e branco todo sério, o Eu-Melodramático chega para assumir o turno dali por diante...
O Eu-Melodramático é alguém muito sentimental. Daquele tipo que acha que carrega o mundo em suas costas. Sente um peso enorme no peito, se angustiando com:
1. A passagem rápida do tempo X tudo o que ele ainda não fez
2. Todas as suas dúvidas, medos e preocupações
3. Todas as histórias tristes e injustiças revoltantes que ele leu no jornal
4. Todos os problemas diários de todas as pessoas que o rodeiam.
Quando o Eu-Melodramático está com sorte, ele chora. Na maioria das vezes, no entanto, ele engole o que sente e tem pensamentos apocalípticos. Mas pensar sobre essas coisas desgasta muito a pessoa, então ele é vencido pelo Eu-Exausto, que estende a mão a mim e me leva lá para aquele mundo onde a gente não tem mais controle dos nossos pensamentos...
Dormimos juntos. Não posso descrever o Eu-Exausto. Como é de se esperar, ele me mantém dopada o tempo todo em que está comigo. Ele é alguém que eu tento conhecer na terapia, porque insiste que a nossa relação aconteça no meu inconsciente.
Nosso encontro dura muitas horas, na maioria das vezes, muito esquisitas. Ou seja, nem sempre eu entendo o que ele tem a me dizer, porque ele tem a mania de se expressar por símbolos e de se transformar nas coisas mais improváveis.
E então, eu acordo mal-humorada. Quase todos os dias. Quando eu acordo, nunca sei quem eu sou. Mas aí, o meu Eu-Zumbi me abraça. Ele é sempre o primeiro a dar bom dia. O meu Eu-Zumbi, parece mais um Frankenstein de filme antigo, aquele tipo de criatura desajeitada, que anda mancando e emite barulhos débeis. O meu Eu-Zumbi/Frankenstein-Retrô:
1. Não distingue se o barulho que ele ouve é o despertador, uma ambulância na rua, um alarme de incêndio, ou o apocalipse sendo anunciado.
2. Nunca sabe o que tem que fazer primeiro, se é o que estava prestes a fazer no seu sonho, ou, realmente, levantar da cama. Então, SEMPRE volta a dormir.
3. Alguns minutos depois, vai lavar o rosto, resmungando xingamentos e achando a vida injusta e cruel demais por arrancá-lo assim de sua caminha. Nessa hora ele também pode ser chamado de Eu-Não-Dormi-O-Suficiente.
4. Toma o café da manhã olhando para o nada e respondendo perguntas com apenas metade do cérebro funcionando.
O Eu-Zumbi nunca conseguiu entender a habilidade que algumas pessoas têm em ficarem despertas logo. Acordar, para ele, sempre foi um processo. Ele sempre está acordANDO, no gerúndio. O seu sono ainda circulando nas veias, é como um sedativo poderoso que perde o efeito gradualmente, bem devagarzinho. Só quando ele se despede de mim, é que o meu dia começa de verdade.